Somos nesta colmeia desafiados pela Ana de Deus a completar, com palavras, o rosto desenhado por Laura Augusti...
... e assim:
O sol ia alto, projetando nos seus olhos a sombra, mas não lhes retirando luz.
Olhos a descoberto pelo cabelo, junto num apanhado que ameaçava já desmanchar-se e invadir o rosto.
Um gesto rápido o afastaria e os olhos continuariam, vastos, dizendo o que precisava ser dito.
Disseram e desviaram-se, já ignorantes d'Ele, fixando um ponto no infinito, onde vagueava o pensamento d'Ela.
Ele continuou fixo naqueles olhos. Veio-lhe à ideia a maneira como se semicerravam quando o nariz, um pouco grande para o rosto aspirava o ar forte da maré vazia. Um nariz aquilino, de uma beleza que provocava os cânones.
Os olhos, evitando agora os seus, continuariam a semicerrar-se nas gargalhadas, soltas por aquela boca não muito bonita, com um lábio inferior polposo e um superior contraditório, fino como uma linha.
Toda aquela mulher era um território incoerente, maravilhoso e apaixonante. Mas para Ele, era altura de rumar a outras paragens...
Ler sem ver os olhos do outro é bom para um romance, para poesia.
Cenários em que a nossa imaginação corre livremente a par de quem escreveu, se apropria das narrativas e se aconchega a elas, ou as repele e coloca de lado.
Com os segundos sentidos que aferimos de acordo com a nossa própria realidade.
Num contexto de comunicação virtual, em que há leitura e escrita, existem também fenómenos de apropriação mental, emocional.
E muitas vezes, a partir da leitura, fazemos uma apropriação segundo o que somos, o que pensamos, escapando-nos a intenção do mensageiro.
Não conhecemos quem está por trás das palavras, não vemos os olhos, a expressão... e quantas vezes um olhar e um sorriso contextuam uma resposta, dão-lhe a verdadeira dimensão!
Não há emojis que cumpram o papel dos olhos nos olhos... e as leituras desviantes, em casos extremos seguidas da resposta de ofensa fácil, alargam-se a todas as plataformas.
São uma peste em tempos de peste.
E por isso, no mundo virtual, o ideal é ser concha.
Adotando, para esta esta peste, as regras daquela outra: máscara e distanciamento!
Um dia voltarão as reuniões entre amigos de palavra fácil, as discordâncias enriquecedoras, as discussões acesas, longas e acompanhadas de uma bebida... olhos nos olhos. sorriso contra sorriso... e aí sim, haverá liberdade de Ser em cada palavra!
Foto: Detalhe de porta no Cais Palafítico da Carrasqueira | Comporta | Fevereiro 2020