Todos os dias se perguntava quantos mais dias assim. Acordar, sair p’ra vida. Seria p’ra vida que saía, que “a vida está lá fora”, diziam.
Mentira. A vida lá fora não tinha nada, era um deserto árido. Dias corridos entre gente de passos repetidos e ouvidos selados por auscultadores. Olhares que nunca se encontravam com o seu o tempo suficiente para um reconhecimento da sua existência.
Mil vezes preferia a vida que se passava na sua cabeça.
Sentava-se num banco da praça e olhava os casais, tentando ver nos seus gestos sinais de amor ou ânsia de afastamento.
Olhava aquela mulher sentada no banco do metro, e procurava na expressão distante indícios da última noite de amor.
Seguia os passos da garota de mochila às costas, e conseguia ver os sonhos que não se iriam realizar e o vazio dos planos para o futuro.
Os seus olhos vagueavam de pessoa para pessoa criando vidas, dramas, passados e futuros, num argumento que dirigia entre a demência da adivinhação dos dias idos e o entusiasmo por um futuro que nunca ira ser seu.
Era muito melhor o mundo que corria num galope desenfreado pela sua cabeça que a vida que lhe era oferecida lá fora.
E por isso, caminhava sempre só, e era a sua melhor companhia.
Relendo o que escrevi para este dia, desisti das palavras. Tudo é pouco, nada chega perante esta dor de ver a liberdade a escapar por entre os dedos. Nada chega perante a escalada dos que se julgam superiores a outros seres humanos, dos que pugnam pelo reconhecimento das suas condições privilegiadas ao assomar da vida.
Não tenho palavras. Por isso, deixo as de Manuel Alegre. Porque nunca as poderia igualar, porque são as que refletem a minha dor, a minha revolta e a minha posição de lutar, lutar sempre!
Mas há sempre uma candeia Dentro da própria desgraça Há sempre alguém que semeia Canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste Em tempo de servidão Há sempre alguém que resiste Há sempre alguém que diz não.
Saramago foi poeta até na prosa, o que aconteceria quando se debruçasse em poesia na folha branca? Maravilha e deslumbramento. Sou leitora da prosa de Saramago até à medula, mas este versejar foi o primeiro contacto que tive com ele, ainda menina. E onde me nasceu a paixão. Comecei por admirar as coisas mais simples do homem da Azinhaga, depois a sua maneira de estar no mundo. Mais tarde, a sua obra que mexe fundo, tão fundo, desde a ligação à terra, o retrato da (des)humanidade, até ao fantástico que nos faz correr o espírito para fora do corpo...
No meu último post, deixei-vos um poema (de 1987) de um amigo, o João Paulo. O Jota Pê nunca está quieto, tem sempre um projeto ou uma surpresa para dar ao mundo! Há uns dez anos lançou ao ar a sua vida certinha e partiu para Maputo, onde é professor na Escola Portuguesa.
É de Moçambique que tem escrito os últimos livros e que, recentemente, lançou no Youtube um canal que merece atenção: Rumores de Tinta. Começou por ligar episódios da mitologia clássica aos nossos dias, e na descrição do primeiro episódio podemos ler que se "revisita o mito de Prometeu, a criação da Humanidade e curiosas analogias com outros textos. Pelo meio, o intrigante papel da Mulher nesta trama!"
A mitologia é fonte dos enredos que melhor e mais profundamente retratam o género humano e, saleinte-se com o drama ou o imenso humor que passam nas vidas mais mundanas. Na verdade, o cerne do mito, as "histórias", permanecem atuais. No âmago, continuamos a ter as mesmas dúvidas, os mesmos desejos e propósitos.
Ao fim de semana, a temática é um pouco mais leve e, neste, um brevissímo mas empolgante relato sobre Charlie Chaplin: A Voz e o Silêncio. Visitem o João Paulo!
Corria o ano de 1987, quando uns quantos caloiros da Faculdade de Letras se juntaram para fazer uma revista de poesia.
Foram publicados três números de uma enorme ingenuidade, em folhas fotocopiadas e uma capa terrível. Mas lá, estavam todos os sonhos que a juventude acarreta, uma força inabalável e um deslumbramento pela poesia que nos uniu nesse projeto lindo.
Estes momentos foram recordados no bloque de um dos autores, Mails para a minha irmã, do João Paulo Videira, (meu colega de então em Línguas e Literaturas Clássicas) e, claro, tinha que os trazer também para este meu lugar.
Parafraseando o Jota Pê, "Venho saudar os jovens autores de então. Venho saudar o espírito empreendedor. Venho saudar a poesia. E, claro, venho saudar todos os leitores do mundo."
Dos vários autores, deixo um poema do Zé Fernando, que nunca mais vi; um do João Paulo, que continua um dos meus amigos mais queridos e, claro, um meu... e Viva o Dia Mundial do Livro...VIVA A POESIA!