Cada passo pelo empedrado das ruas, pelas casas onde já viveu gente e se desenrolaram vidas, nos faz sentir uma dor latente.
A igreja, a escola, o parque onde enferrujam os baloiços…. tudo o que ficou para trás. Tudo o que já foi vida.
Como é que se escolhe o que deixar e levar, quando nos impõem partidas e novos rumos? O espaço na memória ou o peso nos braços; o que nos leva a lançar mão de uma coisa e deixar outra?
Entre as casas desabitadas, de portas escancaradas às suposições do mundo, só as rosas permanecem. Rosas iguais, rentes às paredes de tantas casas, nascem e secam todos os anos da mesma forma. Estacas de boa vizinhança espalhadas pelos canteiros, dadas como um pacote de açúcar ou um aceno. Com tantas rosas partilhadas, de certeza alguém foi feliz aqui…
Adivinhamos muito das pessoas pela maneira como nos olham… mas muito mais pela maneira como nos retratam.
Por trás da lente, a fixar o mundo, o fotógrafo não consegue escapar a si próprio, à autenticidade do fio poderoso que lhe liga os olhos ao coração; ver e sentir. À sinceridade do ângulo que procura e da luz que escolhe.
A fotografia não mente, mas não é sobre o real. A fotografia não mente sobre o fotógrafo.
Foto: e ao contrário do que sempre acontece, hoje o click não foi meu...
É um dos autores que se aponta como sendo Elena Ferrante. Ele ou a mulher, Anita Raja, como alguns preferem. Não prestei atenção à polémica, li os artigos na diagonal e sem interesse. Até que, há uns dois ou três meses, a propósito de Ferrante, alguém me aconselhou um olhar sério sobre a escrita de Starnone. Fiquei curiosíssima e, assim que tive nas mãos o primeiro livro, comecei a leitura dum autor que só conhecia de nome.
Excluindo a questão do enriquecimento do casal, informações obtidas numa pseudo investigação jornalística abusiva, há outros aspetos curiosos.
Domenico Starnone é um excelente escritor, as pessoas dentro dos livros, as relações que se estabelecem, as rotinas que nos invadem assemelhando todos quando, interiormente, temos o nosso próprio barrilzinho de pólvora, de que só muda o tamanho do rastilho… existem na vida de qualquer pessoa que se cruza no nosso caminho. E na nossa.
Comparando-o com Ferrante, há pontos de toque relevantes. A Nápoles retratada, os olhos com que a cidade é vista são muito semelhantes. As personagens cruas, nos enganos e desenganos da vida e do outro, muitas com uma poética que parece resistir a soltar-se nas ruas abruptas das cidades… mas que está lá.
A própria escrita, tanto na forma como no modo como a ação se desenrola tem pontos em comum. Embora Ferrante mais minuciosa e Satarnone mais expedito. O mundo do ensino e dos clássicos de que se assomam o autores…
“Laços” é uma obra que fala dum casamento, dos filhos. Do que acontece como consequência dos nossos actos ou porque não dominamos, por mais tons de rosa que tenham sido os sonhos e as intenções. O amor não mata a memória, os filhos não crescem para ser pessoas perfeitas e, em cada relação, há mais que uma realidade.
E sim, acho perfeitamente plausível que Starnone seja, de facto, Ferrante. E gosto tanto de um como de outro. A esta altura, até prefiro Starnone, talvez porque o último amor é sempre mais forte que o anterior…
Rui Cardoso Martins é um dos meus favoritos atualmente e este “Deixem Passar o Homem Invisível” está a fazer justiça a “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer”, o meu preferido até agora. Descobri-o lá nos alvores do primeiro confinamento, e é daqueles autores de que pode-vir-sempre-mais-um.
Escreve como de um fôlego, e as palavras vêm com a poesia das almas que soltam tudo, ainda virgem, cá para fora. Personagens livres da mácula do juízo alheio, do espartilho da forma. É também uma escrita bem humorada, onde vemos um pouco dos personagens que andam por aqui, neste retângulo à beira-mar plantado, portugueses de gema e outros, de gemada, com açúcar e vinho do Porto - sim, sou da época em que isto se comia.
O início de “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer” levou-me a um velho programa
de TV chamado “Liga dos Últimos” enquanto algumas cenas deste me levam para os diretos duma qualquer TV.
E vamos saltitando pelas palavras com um sorriso, uma gargalhada, um aperto no coração (que as coisas sérias também trespassam nas que se dizem a brincar) e um excelente domínio do português. O que, por si, já é motivo de regozijo.
A história de um cego e uma criança que caem por uma buraco (buracos em Lisboa?) e mergulham no interior da cidade, arrastados por uma enxurrada, é o cenário para muito mais. As infâncias que não são assim tao poéticas, o alimento que é para uns a desventura dos outros. As pessoas nuas e cruas. O amor. E... e ainda não acabei, mas estou a gostar tanto que tinha que vir cá deixar o meu entusiasmo :)
Mas há uma bela com senão; o Rui Cardoso Martins faz tanta coisa que, ao que parece, não lhe sobra muito tempos para escrever livros…
Serotonina, de Michel Houellebecq, foi exatamente o livro indicado para as pausas entre uma enorme carga de trabalho que não serve para nada. Nada como um burocrata desencantado e a crueza da espécie humana para arrancar umas gargalhadas empáticas.
Este é num romance com um sentido de humor acutilante, como se esperava de um autor que procura ser fiel a si próprio.
M.H. é direto, incisivo e não traz qualquer visão poética do amor ou do desejo: as coisas são como são, as hormonas guiam-nos e dizem-nos que também chega o tempo de parar. Porque o corpo manda e a cabeça diz que já não há paciência.
É a história de um homem que vem de uma rotina de escritório e deambula entre relações (e memórias delas) ou melhor; anda aos tropeções por esses territórios. As ideias feitas e romanceadas da masculinidade, feminilidade são motivo de sátira, os objetos de desejo provocatórios. Entre outras considerações polémicas que não podiam escapar a alguém com um interesse tão profundo pelo que move o ser humano como M.H.
Uma viagem pelo amor, o desejo o passar dos anos. E, em jeito de M.H., animemo-nos: um bom prato de comida pode ser orgásmico…
Esta Primavera senti, como nunca antes, a cidade despertar ao ritmo da Natureza.
É um ror de desabrochares, uma turbulência de cores que não se fica pelos canteiros mas que se alastra às pessoas. E estas andam por aí em catadupa de risos e roupas frescas, explodindo em movimento depois de uma hibernação forçada. Antinatural e de uma violência que ecoará ainda por muito tempo.
Um perfeito alinhar com a vida, uma alegria incontida ao sorver do ar do mar e dos cheiros dos jardins.
Que nunca a Primavera e as Gentes estiveram numa sintonia tão perfeita…