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Crónicas do Chão Salgado

resistir e criar, por mais que nos salguem o chão dos dias | crónicas, memoirs, & leituras

Crónicas do Chão Salgado

resistir e criar, por mais que nos salguem o chão dos dias | crónicas, memoirs, & leituras

retomar a vida nas mãos

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Retomar a vida nas mãos. Retomar Sábados e Domingos sem um vidro pelo meio. Dar férias às rotinas de viver aprisionada, na esperança de que sejam um adeus definitivo.
Voltar a viver o que me torna aquilo que sou e deixar de ser pela metade. Redescobrir como sou tão isto. Estes prazeres, estas manhãs hedonistas de sol na cara, mão na mão e sair por aí. A conversa com os amigos de longe que já posso ter perto e como são os seus risos, ah, os seus risos, dos mais ternos dos sons!
Isto é o meu normal. A vida como a quero viver. E aí vou eu, que não podendo ter de volta o tempo que me roubaram, não deixarei que este, agora, lhe faça companhia no poço das coisas invividas. Este, é para me lambuzar de prazer... 
 
foto: o mundo lá fora com tudo o que tem de maravilhoso. E não sejam das pessoas que não fotografam porque está lá um poste ou das que acham que o poste atrapalha. Retratem a vida, tirem partido do mundo como ele é! Com postes... :)
 
 
 
 

Mil vezes o mundo na sua cabeça

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Todos os dias se perguntava quantos mais dias assim. Acordar, sair p’ra vida. Seria p’ra vida que saía, que “a vida está lá fora”, diziam.
 
Mentira. A vida lá fora não tinha nada, era um deserto árido. Dias corridos entre gente de passos repetidos e ouvidos selados por auscultadores. Olhares que nunca se encontravam com o seu o tempo suficiente para um reconhecimento da sua existência.
 
Mil vezes preferia a vida que se passava na sua cabeça.
 
Sentava-se num banco da praça e olhava os casais, tentando ver nos seus gestos sinais de amor ou ânsia de afastamento.
Olhava aquela mulher sentada no banco do metro, e procurava na expressão distante indícios da última noite de amor.
Seguia os passos da garota de mochila às costas, e conseguia ver os sonhos que não se iriam realizar e o vazio dos planos para o futuro.
 
Os seus olhos vagueavam de pessoa para pessoa criando vidas, dramas, passados e futuros, num argumento que dirigia entre a demência da adivinhação dos dias idos e o entusiasmo por um futuro que nunca ira ser seu.
 
Era muito melhor o mundo que corria num galope desenfreado pela sua cabeça que a vida que lhe era oferecida lá fora.
E por isso, caminhava sempre só, e era a sua melhor companhia.
 
 
 

Mitologia Clássica no Youtube

No meu último post, deixei-vos um poema (de 1987) de um amigo, o João Paulo. O Jota Pê nunca está quieto, tem sempre um projeto ou uma surpresa para dar ao mundo! Há uns dez anos lançou ao ar a sua vida certinha e partiu para Maputo, onde é professor na Escola Portuguesa.

É de Moçambique que tem escrito os últimos livros e que, recentemente, lançou no Youtube um canal que merece atenção: Rumores de Tinta. Começou por ligar episódios da mitologia clássica aos nossos dias, e na descrição do primeiro episódio podemos ler que se "revisita o mito de Prometeu, a criação da Humanidade e curiosas analogias com outros textos. Pelo meio, o intrigante papel da Mulher nesta trama!"

A mitologia é fonte dos enredos que melhor e mais profundamente retratam o género humano e, saleinte-se com o drama ou o imenso humor que passam nas vidas mais mundanas. Na verdade, o cerne do mito, as "histórias", permanecem atuais. No âmago, continuamos a ter as mesmas dúvidas, os mesmos desejos e propósitos. 

Ao fim de semana, a temática é um pouco mais leve e, neste, um brevissímo mas empolgante relato sobre Charlie Chaplin: A Voz e o Silêncio. Visitem o João Paulo! 

 

 

castanho-tempo

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A garganta seca, o peito aperta, as mãos seguram o volante com a pouca força que ainda sinto, agora que me aproximo. Corro a estrada devagar e acompanha-me, pela esquerda, o encrespar leve no azul marinho, o mesmo das tardes dos que estão e dos que partiram. "Vês, filha, o mar está cheio de carneirinhos."
 
Vejo já o fim da praia, onde a faixa de areia é quebrada pelos rochedos batidos às ondas. A espuma desfaz-se contra o castanho da pedra e, ao longe, a silhueta negra do Cabo entrando no Atlântico e deixando, para trás, as copas em verde profundo da Serra. Que oculta, entre outros mistérios, o da minha melancolia. Já ali à frente. "A Peninha nunca te contará nada; é magia, e na magia só te descobres a ti própria".
 
Anoitece, naquela indecisão que a luz toma quando se desfaz e o céu sugere já a noite, num azul cobalto que logo se desmancha em mil laranjas. Antes de partir até à alvorada, a luz brinca por ali, hesitando entre a lembrança do azul claro e límpido da tarde e os rosas e amarelos do adeus ao dia. "Sabes que luz encerra todas as cores, e há olhos que vêem mais que sete?"
 
O meu caminho é o da Casa. E da Casa, lembro-me que se ouve o mar entre o cheiro a citrino e a floresta, que é rugosa ao tacto e só se alcança depois de um caminho íngreme e  estreito. Este, por onde agora entro a custo, sentindo a agressão  dos arbustos, incomodados pela invasão. "Claro que moramos no fim da subida, assim só vem quem nos quer mesmo ver".
 
Passo árvores e muros, o coração acelera... ali está ela, a Casa. Abraçada por uma Primavera de lúcia-lima, que rebenta agora em verde claro de folha nova gritando "não" ao Outono do abandono. Um Outono que  foi ficando, alastrando-se nas folhas caídas, algumas lembrando ainda o vermelho dos últimos tempos de árvore. Logo antes da queda sobre os muros, agora dum castanho escurecido pelo abandono. Castanho-tempo, castanho-memória, patine de esquecimento, do deliberado deixar dos dias lá atrás... é perigoso voltar aos sítios onde fomos felizes, diz-se. Aos sítios que ficaram pertença dos nossos mortos.
 
Mas há lugares que nos possuem;  há madeiras, paredes e muros que, mesmo desprezados, sabem a linha reta para a nossa alma. E foi assim que eu nesse fim de dia, sem escapatória, num olhar feito de abraço, só pude gritar bem alto "cheguei a Casa"!

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Escrito no âmbito do desafio da "caixa de lápis de cor" no blog da  Fátima,. Entram também o José da Xã A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Isabel, a Luísa de Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,, a Miss Lollipop, a Ana Mestre, Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue, o João-Afonso Machado Marquesa de Marvila  e a olga

o lado negro do perfeccionismo e a alegria de só estar

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O perfeccionismo pode ser uma força motriz da procura da excelência, do belo, da profunda satisfação que é olhar para algo e dizer É isto!
A alegria de perceber que foi dado um passo após o outro, que o caminho está a ser feito como dizia Machado, caminhando,
 
Mas. O Mas do perfeccionismo alastra-se às coisas essenciais, como o trabalho e às coisas livres de obrigações. Invade e corrói de dúvida, frustração. Rouba alegrias através do que pode, por escolha própria, permanecer "descomplicado".
O perfeccionismo, no seu lado negro, leva à má gestão dos prazos, porque nunca uma fase está suficientemente boa antes de se passar à próxima. É difícil para um perfeccionista aceitar que tem que avançar. Os perfeccionistas escondem as coisas que fazem por prazer na gaveta, pois não-estão-como-podiam-estar.
 
Os perfeccionistas não percebem que há pessoas que não são perfeccionistas ou, pelo menos têm a capacidade de não o ser em certas circunstâncias, em prol do prazer que tiram de fazer algo.
Essas pessoas têm a coragem de cozinhar, esculpir, fotografar, pintar, escrever sem a meta de chegar a chefs, artistas, escritores. Têm a coragem de fazer algo pelo puro deleite do processo criativo. O processo.
 
Uns são movidos pela sede de perfeccionismo e outros, pela pura ruindade, os trolls. Atravessam a escrita dos outros procurando uma oportunidade de atacar a presa, de usar a panóplia de deselegâncias que foram juntando ao seu espólio ao longo da carreira de críticos virtuais.
Não percebem que há contextos em que não há lugar para a crítica literária, nem boa nem má. Inclusive porque além da discutível questão do "gosto" se coloca a da competência para tal. Há lugares onde impera o prazer de estar, só isso. 
 
A minha experiência com estes passageiros da máscara resume-se a um comentário, há muitos meses, em que me disseram que o meu post não acrescentava nada e a fotografia também nada tinha a ver. Ora, mas eu lá estou aqui para acrescentar alguma coisa à vida de alguém? Não. Com isso, preocupo-me no trabalho, aqui estou por razões perfeitamente hedonistas. E se alguém não tem imaginação para ligar uma fotografia artística a um texto... preciso mesmo de explicar? 
 
Mas tenho ficado abismada com algumas coisas relatadas por aí.
Aos trolls não tenho nada a dizer. Mas aos críticos, lembrem-se que aqui está gente pelo puro fruir da palavra, pela interação. Que a língua portuguesa é propriedade de quem a fala, e mesmo os que não a dominam têm direito a ela; por isso é algo vivo, não estático. A língua não pertence às elites. Quem procura a excelência da palavra escrita, vá a outra estante que não esta.
Dirijam-se às editoras que tudo publicam, desresponsabilizando-se do seu papel de referencial. Um blog, não o é. Protestem pelo imposto sobre os livros, o seu preço exacerbado, que impede o comum dos portugueses de ter acesso regular ao que se faz de bom e novo na literatura contemporânea. E aí sim, estão as referências, pois ninguém escreve bem sem ler muito, muito! 

E não se esqueçam de que podem estar a lançar muita escrita a um Salon des Refusés.
 
 
Fotografia: Ericeira, Março de 2021. A ligação à prosa é de interpretação livre.
 
 
 
 

amanheceres amarelo-limão

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Se tivesse que escolher uma só planta para me amanhecer, seria um limoeiro.
Gosto de tudo, nos limoeiros. O verde profundo da copa; o fruto amarelo, devolvendo a luz; as flores miúdas e o cheiro, ah, o cheiro... deixar as janelas abertas para acordar de espírito perfumado e ganas de viver!
Os limoeiros são uma árvore caprichosa, o que só me faz amá-los mais, que os quintais estão cheios de flora previsível.
Ora dão limões quando mais nenhuma árvore dá fruto, carregados e anárquicos, coexistindo flor e fruto maduro, impetuosos... ora estão tempos sem dar sinal de vida, ignorando sobranceiros os olhos vigilantes que procuram o primeiro sinal de amarelo.
Aos meus limoeiros, ninguém impõe uma pedra para os tornar arbustos de jardim. Fazem o que querem, e eu recebo-os em manhãs amarelas como uma dádiva de luz.


Fotografia: limoeiro da janela de um meu quarto, numa das minhas manhãs de eleição.
texto para o desafio da caixa dos lápis de cor https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/438209.html

a razão de escrever

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Tenho pensado nas razões que me levam escrever.
 
Por estes tempos, o acto de escrever é o meu luxo de egoísmo ao final do dia. O meu salute per aquam em que me banho em ideias e palavras.
É o momento em que deixo de pensar em todos aqueles que agora me ocupam os dias e as emoções, dentro e fora de casa. É o momento em me vejo só.
 
E será por isso que, nos últimos tempos, escrevo sobretudo sobre mim, como só eu me interessasse. 
Mas na realidade este é, no final do dia, o tempo em quem me resgato. Me recupero da exaustão de me dar a dobrar, tentando diminuir a distância, ludibriar o espaço cavado entre nós.
E a escrita surge, como um acto solitário e, inevitavelmente, voltado para mim. Procurando-me entre "os despojos do dia". Equilíbrio.
 
E vocês, escrevem pelas mesmas razões de há um ano atrás?