Levávamos uma manta, fazíamos as coisas que fazem os amantes que levam uma manta para o campo.
Falávamos dos pássaros de que não sabíamos o nome, coçávamos a pele um do outro, já vermelha do chicote das ervas.
A manta saiu da mala do carro, mas ainda andam por aí os corvos a que chamávamos tordos e as ervas, meu amor, ainda balançarão até nós se lá voltarmos.
Rias-te quando eu parava a comer bagas e mordiscar folhas.
Nunca conheci ninguém que comesse as ervas dos caminhos, dizias.
E eu (respondia) nunca conheci ninguém que me quisesse devorar pelos caminhos...
Ler sem ver os olhos do outro é bom para um romance, para poesia.
Cenários em que a nossa imaginação corre livremente a par de quem escreveu, se apropria das narrativas e se aconchega a elas, ou as repele e coloca de lado.
Com os segundos sentidos que aferimos de acordo com a nossa própria realidade.
Num contexto de comunicação virtual, em que há leitura e escrita, existem também fenómenos de apropriação mental, emocional.
E muitas vezes, a partir da leitura, fazemos uma apropriação segundo o que somos, o que pensamos, escapando-nos a intenção do mensageiro.
Não conhecemos quem está por trás das palavras, não vemos os olhos, a expressão... e quantas vezes um olhar e um sorriso contextuam uma resposta, dão-lhe a verdadeira dimensão!
Não há emojis que cumpram o papel dos olhos nos olhos... e as leituras desviantes, em casos extremos seguidas da resposta de ofensa fácil, alargam-se a todas as plataformas.
São uma peste em tempos de peste.
E por isso, no mundo virtual, o ideal é ser concha.
Adotando, para esta esta peste, as regras daquela outra: máscara e distanciamento!
Um dia voltarão as reuniões entre amigos de palavra fácil, as discordâncias enriquecedoras, as discussões acesas, longas e acompanhadas de uma bebida... olhos nos olhos. sorriso contra sorriso... e aí sim, haverá liberdade de Ser em cada palavra!
Foto: Detalhe de porta no Cais Palafítico da Carrasqueira | Comporta | Fevereiro 2020