Por estes tempos, o acto de escrever é o meu luxo de egoísmo ao final do dia. O meu salute per aquam em que me banho em ideias e palavras.
É o momento em que deixo de pensar em todos aqueles que agora me ocupam os dias e as emoções, dentro e fora de casa. É o momento em me vejo só.
E será por isso que, nos últimos tempos, escrevo sobretudo sobre mim, como só eu me interessasse.
Mas na realidade este é, no final do dia, o tempo em quem me resgato. Me recupero da exaustão de me dar a dobrar, tentando diminuir a distância, ludibriar o espaço cavado entre nós.
E a escrita surge, como um acto solitário e, inevitavelmente, voltado para mim. Procurando-me entre "os despojos do dia". Equilíbrio.
E vocês, escrevem pelas mesmas razões de há um ano atrás?
Hoje, num mimo de Domingo, surge um croissant quentinho, que desde logo lhe anima a alma - "tenho a alma muito perto do estômago", costuma dizer, "uma chatice".
Prato escolhido a preceito (estava no fundo da pilha, de certeza), aquele olhar que a encanta e um "Paris em casa" lançado ao ar...
E são as memórias da primeira viajem que fizeram juntos; os passeios pela cidade em que invariavelmente lhe sai um "adoro o nome desta loja " quando passa pela Paris em Lisboa.
E voltaram a esses dias, fizeram planos para os repetir, porque aquilo que importa e os tornou encantados, permanece - a paixão.
E tudo isto através de um croissant... há bilhetes para a felicidade onde menos os esperamos!
A crónica é, a par da poesia, o que mais prazer me dá escrever nos últimos tempos.
Por impaciência, cansaço mental ou apenas pouco tempo disponível, gosto de textos curtos. Agrada-me escrever num repente, na força do impulso. Normalmente pela madrugada, corresponda esta à hora a que me deito ou acordo.
Mais tarde, volto a alguns desses escritos e, se me agradam, retomo-os. Limo, desbasto, completo. E arquivo-os em blogs de textos finais: um para poesia e outro para crónicas.
Escolhi organizar o que escrevo assim, em blogs, porque o meu sentido estético se satisfaz muito mais neste formato que num ficheiro word deitado a uma qualquer nuvem! Fixá-los em papel, no computador ou disco externo são opções que me levaram a perder tudo o que fiz até cerca de 2015... Uma lição aprendida e uma longa história.
Mas voltando à crónica, encontro nela uma plasticidade que se molda ao que exige sair de mim no momento. A crónica é um relato de vida e pode ou não colar-se à vivência pessoal do autor. Em caso afirmativo entramos no campo da crónica pessoal, do memoir, o registo intimista de uma página de diário.
Sou, por temperamento e formação, uma observadora de lugares, de gentes. E fascinam-me as emoções, das tenebrosas às mais leves. É esta a base das minhas realizações como, neste caso, a escrita.
A crónica dá a liberdade de olhar, ver, mas simultaneamente viajar dentro de nós próprios... e criar, ficcionar.
Umas das cronistas que aconpanho, a Claudia Lucas Chéu, deixou há poucos dias um texto que ilustra muito do que é a crónica e a forma como, por vezes, chega a quem a lê:
"Acontece, às vezes, os leitores e as leitoras terem dificuldade em distinguir; basta que os textos estejam na primeira pessoa e que pareçam verosímeis, dada a biografia pública, e logo concluem estar perante uma confidência. Se lessem com atenção saberiam que não era possível eu ser anorética e enfarta-brutos, estudante de economia e médica, lésbica e devoradora de cavalheiros, algo pudica e bastante puta, entre muitas outras disparidades, tudo em simultâneo".
E é esta a liberdade que a crónica permite! Boa escrita.
Um dos sítios que chama por mim desde outras vidas, é o Cabo Espichel, num fascínio sem palavras... que aumentou quando conheci a história de Elisa, através dum seu neto. Coincidência, ou talvez não.
Numa altura em que passarei a estar menos por aqui, deixo-vos um texto muito maior que o habitual, uma síntese desta história, que tenho escrita algures em modo de pequeno romance:
Elisa nasceu em finais do século XIX numa família burguesa, crescendo entre lições de piano, francês, bordados e leituras. Não era estranha a esta educação a origem austríaca da família, demarcada do espírito tacanho da sociedade portuguesa.
Gostava também de vestidos e atavios, ou não fosse a família dona de uma casa de modas da Baixa lisboeta. Estando esta casa destinada ao filho homem, dado aos negócios, as meninas seguiram a sua vida, na perspetiva de um casamento que desse continuidade à tépida e confortável vida lisboeta.
Elisa encantou-se com António, um rapaz de origem modesta, mas que tinha estudado além do ensino primário, o que a moça considerou um bom augúrio. Era responsável pelo telégrafo do farol do Cabo Espichel, um emprego estável em que até se poderia aproximar de Lisboa...
Em 1911, Elisa e António casaram, indo viver para o Cabo Espichel. Fizeram sua uma das antigas casas dos peregrinos do Santuário de Nossa Senhora da Pedra Mua.
Elisa começou, então, uma vida longe dos prazeres habituais, afastada das conversas sobre as últimas novidades das modas aos livros e revistas de que tanto gostava.
Não tinha ali quem a entendesse ou ouvisse, e nem no marido encontrava esse eco da alma de que tanto precisava. António não era o companheiro que imaginara, mas sim um homem sorumbático e avaro, que em Elisa via apenas uma serviçal. Em silêncio de preferência. E para garantir que assim era, a violência entrou na sua vida.
Fora de casa, Elisa percorria a falésia, olhava o mar e ouvia o vento, que ali tem uma voz que entra dentro da alma, como se tudo lesse cá por dentro. Passeava pelas ruínas da antiga Ópera setecentista, imaginando a música e os risos que lá se tinham ouvido. E lia. E lia...
As suas deambulações e leituras eram a única liberdade que António lhe concedia, apesar das vozes vizinhas, que o advertiam, viperinas, da estranheza e pouco recato que estas atitudes sugeriam.
Nasceu então Leonardo, e mandou-se chamar a jovem Beatriz, para ajudar na criação do menino. Uma companhia jovem, que alegrou a vida de Elisa. A sua condição de mãe aproximou-a também das mulheres suas vizinhas e, com as habilidades para a costura que tinha, ajudava-as a transformar vestidos e fazer adereços que lhes punham um sorriso no rosto na missa de Domingo. Beatriz ficou até despontar a Grande Guerra, altura em que casou e foi morar para a Azóia, uma aldeia próxima.
Foi por esses tempos que João Morais, cabo da Guarda Nacional Republicana veio para o Cabo Espichel. Entrou um dia a cavalo, garboso, pelo recinto do santuário, e Elisa não mais apagou essa imagem do seu espírito.
O Cabo tinha como função vigiar a costa, desenhando um percurso que passava pela casa de Elisa, uma alegria para os olhos num meio sem interesses de maior. E cumprimentavam-se, respeitosamente... a cada vez com mais demora. De tal forma que surgiram as costumeiras tricas do mulherio.
Nos dias em que Beatriz vinha visitar Elisa, o cabo demorava-se. Homem viajado, de gostos citadinos, trazia café brasileiro escapado aos contrabandistas que os três saboreavam, enquanto Elisa redescobria o prazer das conversas sobre novos livros, sobre o mundo além do cabo! E da conversa à luxúria, foi um passo... e os anos seguintes assim se passaram. Os encontros na Azóia, em casa de Beatriz, madrinha deste amor.
O difícil feitio de António, a par com a sua recente mas obsessiva dedicação à vida política, foram a razão dos rumores deste amores ilícitos tardarem a chegar. No entanto, veio o dia em que António, depois de deixar em Elisa a marca do cinto, a proibiu de sair.
Leonardo tinha já sete anos quando António decidiu que tirariam uma fotografia os três, num estúdio de Sesimbra. Fotografia com direito a moldura e permanência em lugar de destaque na sala.
João e Elisa só se viram de longe nos dois anos seguintes e António ficou mais sossegado quando Elisa engravidou e nasceu Sãozinha, em 1925, que para ele era um ponto final nos rumores do povo. Cada vez estava mais amargo, frio e tenebroso. E vigilante, nunca permitia que Elisa saísse sem ser acompanhada por ele.
Em Junho do ano seguinte, desfila pelo santuário um destacamento de militares a cavalo encabeçado por João Morais. Elisa não o larga de vista, ouvindo-o dizer aos seus homens que iria cumprir uma promessa no santuário. Elisa deixa as crianças com a moça que a ajudava na lida da casa, e entra na igreja... o tempo bastante para João marcar um encontro para a noite seguinte às dez. E dois meses de paixão se seguiram, com os encontros noturnos nos dias em que António estava de serviço ao telégrafo... escala a que João tinha acesso pelas suas funções.
Dois meses. Até uma noite de Agosto em que António, indisposto, vai a casa e apenas encontra os filhos a dormir. Louco de raiva, corre as redondezas até encontrar os amantes nas ruínas perto do santuário. Não se sabe o que terá sido dito ou feito entre os dois homens, as palavras que Elisa terá gritado ou gemido.
Certo é que António arrastou a mulher até casa, colérico.
Nessa mesma noite Elisa foi ao cesto da costura e recolhe uma fita de seda. Encaminha-se para a falésia. Aperta a fita, tapando os olhos e lança-se no nada, em direção às escarpas e ao mar.
Ou terá sido António a pegar a fita, a atá-la sobre os olhos de Elisa e a lançá-la no abismo. Este segredo morreu com um António atormentado, que dizia ser “o Diabo” e ter feito "coisas terríveis, imperdoáveis".
Na fotografia que tiraram em Sesimbra, António furou os olhos de Elisa, e colou outra por cima. Só mais a filha a descobriria vendo, pela primeira vez, a imagem da mãe. De olhos furados.
A história continuou, mas vamos apanhá-la de novo na herança que passou, pelo sangue, de Elisa aos filhos e netos... a herança de tudo fazer por amor!
A história, agora, vive-se no ritual da visita às arribas que Elisa corria.
E Elisa, se por lá estiver, sorrirá ao sangue do seu sangue que lutou por fazer de um amor condenado um amor com final feliz...
Fotografias: Alexandra Onica no Cabo Espichel, e o Cabo em alegres dias as Verão.
Somos nesta colmeia desafiados pela Ana de Deus a completar, com palavras, o rosto desenhado por Laura Augusti...
... e assim:
O sol ia alto, projetando nos seus olhos a sombra, mas não lhes retirando luz.
Olhos a descoberto pelo cabelo, junto num apanhado que ameaçava já desmanchar-se e invadir o rosto.
Um gesto rápido o afastaria e os olhos continuariam, vastos, dizendo o que precisava ser dito.
Disseram e desviaram-se, já ignorantes d'Ele, fixando um ponto no infinito, onde vagueava o pensamento d'Ela.
Ele continuou fixo naqueles olhos. Veio-lhe à ideia a maneira como se semicerravam quando o nariz, um pouco grande para o rosto aspirava o ar forte da maré vazia. Um nariz aquilino, de uma beleza que provocava os cânones.
Os olhos, evitando agora os seus, continuariam a semicerrar-se nas gargalhadas, soltas por aquela boca não muito bonita, com um lábio inferior polposo e um superior contraditório, fino como uma linha.
Toda aquela mulher era um território incoerente, maravilhoso e apaixonante. Mas para Ele, era altura de rumar a outras paragens...