As ameixas são fruta por que tem que se saber esperar. Ficar em guarda até ao momento em que a pele ainda estala sob dentes quando se trinca, mas já não se consegue segurar o sumo que corre para fora das margens da boca.
Daniel Faria tem uma obra assim, “no ponto” certo para ser devorada como ameixa em Julho.
Daniel morreu cedo demais, até Cristo teve mais tempo. A brevidade do tempo que teve toma conta de todas as emoções que se tenham ao ler a sua poesia. Essa orfandade das obras que não foram escritas, domina à medida que se vira mais uma página. E o espanto pela beleza das palavras sucumbe à tristeza de ser um ponto final. Talvez seja essa a razão porque é tão difícil falar da poesia de Daniel Faria… ou talvez seja mesmo porque não há muito mais a dizer depois da ler. Fala por si, na transparência abrupta da alma de Poeta.
Hiromi Kawakami “é uma das escritoras contemporâneas mais populares do Japão”, assim termina a apresentação na badana de “Os Amores do Senhor Nishino”, da Casa das Letras.
O termo “popular” torna-me logo desconfiada e começo estas leituras com algumas reservas… que aqui logo se dissiparam.
Ao longo de histórias que têm como personagem principal as mulheres que cruzam a vida de Nishino, vamos correndo diferentes formas de amar e desamar. De passar pela carne, pelo sexo. A prosa é de uma sensualidade transparente, por vezes brutal de tão direta, e os sentimentos ora nos são apresentados frágeis, como um pássaro acabado de nascer, ora como um espinho de uma rosa ali, à espera de quem se atreve.
Não terei nunca hipótese de ler o original, mas arrisco-me a dizer que a tradução de Maria João Lourenço só pode ser excelente, pelo ritmo que sinto na obra e o modo como me envolveu.
Um dos contos tem o título de “Uvas”, e é como um cacho de uvas que este livro se saboreia… até porque se o autor da história de Adão e Eva tivesse provado uvas, esta seria certamente a fruta do pecado.
Mais um Verão em que Tordo lança um thriller. Um livro adequado à época, pela leitura fácil e agradável.
Assassinato de adolescentes, uma ligação ao passado, uma investigadora (comissária!) com problemas de adição sexual e uma posição frágil no local de trabalho.
Se o esquema não é dos mais originais num thriller, a trama é sabiamente urdida e em bom português, o que é sempre de salientar - e gostar.
Um livro destinado a ir aos tops mas, de forma alguma, o que Tordo tem de melhor. Este Tordo lê-se bem, é uma companhia agradável, mas para quem tem a Triologia dos Lugares Sem Nome entre os livros preferidos, esta leitura leve sabe a pouco.
Aguardo que Tordo volte às personagens densas, ao obscuro do ser… aos livros que o tornaram um dos meus preferidos. Aguardo.
É um dos autores que se aponta como sendo Elena Ferrante. Ele ou a mulher, Anita Raja, como alguns preferem. Não prestei atenção à polémica, li os artigos na diagonal e sem interesse. Até que, há uns dois ou três meses, a propósito de Ferrante, alguém me aconselhou um olhar sério sobre a escrita de Starnone. Fiquei curiosíssima e, assim que tive nas mãos o primeiro livro, comecei a leitura dum autor que só conhecia de nome.
Excluindo a questão do enriquecimento do casal, informações obtidas numa pseudo investigação jornalística abusiva, há outros aspetos curiosos.
Domenico Starnone é um excelente escritor, as pessoas dentro dos livros, as relações que se estabelecem, as rotinas que nos invadem assemelhando todos quando, interiormente, temos o nosso próprio barrilzinho de pólvora, de que só muda o tamanho do rastilho… existem na vida de qualquer pessoa que se cruza no nosso caminho. E na nossa.
Comparando-o com Ferrante, há pontos de toque relevantes. A Nápoles retratada, os olhos com que a cidade é vista são muito semelhantes. As personagens cruas, nos enganos e desenganos da vida e do outro, muitas com uma poética que parece resistir a soltar-se nas ruas abruptas das cidades… mas que está lá.
A própria escrita, tanto na forma como no modo como a ação se desenrola tem pontos em comum. Embora Ferrante mais minuciosa e Satarnone mais expedito. O mundo do ensino e dos clássicos de que se assomam o autores…
“Laços” é uma obra que fala dum casamento, dos filhos. Do que acontece como consequência dos nossos actos ou porque não dominamos, por mais tons de rosa que tenham sido os sonhos e as intenções. O amor não mata a memória, os filhos não crescem para ser pessoas perfeitas e, em cada relação, há mais que uma realidade.
E sim, acho perfeitamente plausível que Starnone seja, de facto, Ferrante. E gosto tanto de um como de outro. A esta altura, até prefiro Starnone, talvez porque o último amor é sempre mais forte que o anterior…
Rui Cardoso Martins é um dos meus favoritos atualmente e este “Deixem Passar o Homem Invisível” está a fazer justiça a “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer”, o meu preferido até agora. Descobri-o lá nos alvores do primeiro confinamento, e é daqueles autores de que pode-vir-sempre-mais-um.
Escreve como de um fôlego, e as palavras vêm com a poesia das almas que soltam tudo, ainda virgem, cá para fora. Personagens livres da mácula do juízo alheio, do espartilho da forma. É também uma escrita bem humorada, onde vemos um pouco dos personagens que andam por aqui, neste retângulo à beira-mar plantado, portugueses de gema e outros, de gemada, com açúcar e vinho do Porto - sim, sou da época em que isto se comia.
O início de “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer” levou-me a um velho programa
de TV chamado “Liga dos Últimos” enquanto algumas cenas deste me levam para os diretos duma qualquer TV.
E vamos saltitando pelas palavras com um sorriso, uma gargalhada, um aperto no coração (que as coisas sérias também trespassam nas que se dizem a brincar) e um excelente domínio do português. O que, por si, já é motivo de regozijo.
A história de um cego e uma criança que caem por uma buraco (buracos em Lisboa?) e mergulham no interior da cidade, arrastados por uma enxurrada, é o cenário para muito mais. As infâncias que não são assim tao poéticas, o alimento que é para uns a desventura dos outros. As pessoas nuas e cruas. O amor. E... e ainda não acabei, mas estou a gostar tanto que tinha que vir cá deixar o meu entusiasmo :)
Mas há uma bela com senão; o Rui Cardoso Martins faz tanta coisa que, ao que parece, não lhe sobra muito tempos para escrever livros…
Serotonina, de Michel Houellebecq, foi exatamente o livro indicado para as pausas entre uma enorme carga de trabalho que não serve para nada. Nada como um burocrata desencantado e a crueza da espécie humana para arrancar umas gargalhadas empáticas.
Este é num romance com um sentido de humor acutilante, como se esperava de um autor que procura ser fiel a si próprio.
M.H. é direto, incisivo e não traz qualquer visão poética do amor ou do desejo: as coisas são como são, as hormonas guiam-nos e dizem-nos que também chega o tempo de parar. Porque o corpo manda e a cabeça diz que já não há paciência.
É a história de um homem que vem de uma rotina de escritório e deambula entre relações (e memórias delas) ou melhor; anda aos tropeções por esses territórios. As ideias feitas e romanceadas da masculinidade, feminilidade são motivo de sátira, os objetos de desejo provocatórios. Entre outras considerações polémicas que não podiam escapar a alguém com um interesse tão profundo pelo que move o ser humano como M.H.
Uma viagem pelo amor, o desejo o passar dos anos. E, em jeito de M.H., animemo-nos: um bom prato de comida pode ser orgásmico…
Eucanaã Ferraz foi o vencedor do primeiro Prémio Poesia Oeiras na vertente consagração, com a obra Retratos com Erro.
Este prémio de €20.000,00 foi instituído como parte do esforço da Câmara Municipal de Oeiras em colocar o concelho na rota das artes e das letras, particularmente da Poesia. Um braço da candidatura a Capital Europeia da Cultura em 2027.
Não posso dizer que Eucanaã Ferraz, o poeta brasileiro nascido em 61 seja um dos meus poetas preferidos... mas conheço mal a obra. Fica um poema do livro vencedor. É o meu favorito mas, não nego, por rever nele os meus dias de máquina na mão. Porque, como diz André Tecedeiro, "Cada um lê no poema / o poema que traz em si."