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Crónicas do Chão Salgado

resistir e criar, por mais que nos salguem o chão dos dias | crónicas, memoirs, & leituras

Crónicas do Chão Salgado

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o lado negro do perfeccionismo e a alegria de só estar

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O perfeccionismo pode ser uma força motriz da procura da excelência, do belo, da profunda satisfação que é olhar para algo e dizer É isto!
A alegria de perceber que foi dado um passo após o outro, que o caminho está a ser feito como dizia Machado, caminhando,
 
Mas. O Mas do perfeccionismo alastra-se às coisas essenciais, como o trabalho e às coisas livres de obrigações. Invade e corrói de dúvida, frustração. Rouba alegrias através do que pode, por escolha própria, permanecer "descomplicado".
O perfeccionismo, no seu lado negro, leva à má gestão dos prazos, porque nunca uma fase está suficientemente boa antes de se passar à próxima. É difícil para um perfeccionista aceitar que tem que avançar. Os perfeccionistas escondem as coisas que fazem por prazer na gaveta, pois não-estão-como-podiam-estar.
 
Os perfeccionistas não percebem que há pessoas que não são perfeccionistas ou, pelo menos têm a capacidade de não o ser em certas circunstâncias, em prol do prazer que tiram de fazer algo.
Essas pessoas têm a coragem de cozinhar, esculpir, fotografar, pintar, escrever sem a meta de chegar a chefs, artistas, escritores. Têm a coragem de fazer algo pelo puro deleite do processo criativo. O processo.
 
Uns são movidos pela sede de perfeccionismo e outros, pela pura ruindade, os trolls. Atravessam a escrita dos outros procurando uma oportunidade de atacar a presa, de usar a panóplia de deselegâncias que foram juntando ao seu espólio ao longo da carreira de críticos virtuais.
Não percebem que há contextos em que não há lugar para a crítica literária, nem boa nem má. Inclusive porque além da discutível questão do "gosto" se coloca a da competência para tal. Há lugares onde impera o prazer de estar, só isso. 
 
A minha experiência com estes passageiros da máscara resume-se a um comentário, há muitos meses, em que me disseram que o meu post não acrescentava nada e a fotografia também nada tinha a ver. Ora, mas eu lá estou aqui para acrescentar alguma coisa à vida de alguém? Não. Com isso, preocupo-me no trabalho, aqui estou por razões perfeitamente hedonistas. E se alguém não tem imaginação para ligar uma fotografia artística a um texto... preciso mesmo de explicar? 
 
Mas tenho ficado abismada com algumas coisas relatadas por aí.
Aos trolls não tenho nada a dizer. Mas aos críticos, lembrem-se que aqui está gente pelo puro fruir da palavra, pela interação. Que a língua portuguesa é propriedade de quem a fala, e mesmo os que não a dominam têm direito a ela; por isso é algo vivo, não estático. A língua não pertence às elites. Quem procura a excelência da palavra escrita, vá a outra estante que não esta.
Dirijam-se às editoras que tudo publicam, desresponsabilizando-se do seu papel de referencial. Um blog, não o é. Protestem pelo imposto sobre os livros, o seu preço exacerbado, que impede o comum dos portugueses de ter acesso regular ao que se faz de bom e novo na literatura contemporânea. E aí sim, estão as referências, pois ninguém escreve bem sem ler muito, muito! 

E não se esqueçam de que podem estar a lançar muita escrita a um Salon des Refusés.
 
 
Fotografia: Ericeira, Março de 2021. A ligação à prosa é de interpretação livre.
 
 
 
 

peste em tempo de peste

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Ler sem ver os olhos do outro é bom para um romance, para poesia.
Cenários em que a nossa imaginação corre livremente a par de quem escreveu, se apropria das narrativas e se aconchega a elas, ou as repele e coloca de lado.
Com os segundos sentidos que aferimos de acordo com a nossa própria realidade.
 
Num contexto de comunicação virtual, em que há leitura e escrita, existem também fenómenos de apropriação mental, emocional.
E muitas vezes, a partir da leitura, fazemos uma apropriação segundo o que somos, o que pensamos, escapando-nos a intenção do mensageiro.
Não conhecemos quem está por trás das palavras, não vemos os olhos, a expressão... e quantas vezes um olhar e um sorriso contextuam uma resposta, dão-lhe a verdadeira dimensão!
 
Não há emojis que cumpram o papel dos olhos nos olhos... e as leituras desviantes, em casos extremos seguidas da resposta de ofensa fácil, alargam-se a todas as plataformas.
São uma peste em tempos de peste.
 
E por isso, no mundo virtual, o ideal é ser concha. 
Adotando, para esta esta peste, as regras daquela outra: máscara e distanciamento!
Um dia voltarão as reuniões entre amigos de palavra fácil, as discordâncias enriquecedoras, as discussões acesas, longas e acompanhadas de uma bebida... olhos nos olhos. sorriso contra sorriso... e aí sim, haverá liberdade de Ser em cada palavra! 
 
 
Foto: Detalhe de porta no Cais Palafítico da Carrasqueira | Comporta | Fevereiro 2020